sexta-feira, 16 de dezembro de 2016

Ponte Luiz I

Ponte Luiz I


Eu desço por ti – disse-lhe. Arranja-me corda.

Debruçada no ventre marmóreo do vento
Em cama de céu vertical
Um corpo confuso cheio de olhos fita o rio.
As arestas, as arestas
Fendas tricotadas de precipício
E nos pés o pulsar da dama de ferro.

Jurei de te montava,
E com a corda nos dedos frágeis
Os pés abrem-se de vida às casas
Que me saltam pela boca.

Madrugada às cambalhotas pelos olhos:
São os pés que se enroscam no vazio
E a corda já ficou no tabuleiro
De mil espadas nos olhos
Abertas pelo Douro.

Montar o arco de um lance
E o corpo cola-se gélido ao gigante inclinado
Que dobra e foge
Que ferve de cactos o olhar.
Içado pelo breu o grito
Superlativo presente
O choque colossal dos meus músculos de besta
Que domam, que prendem
Que reinam sobre a ponte.

Na mente primitiva a urgência
Urgência sem nome como todas as urgências
Porque nenhuma palavra esconjura este orgasmo de medo:
Os olhos abandonaram-me
São caleidoscópios de mãos e de pés
Que me abrem a garganta de casas e de rio
Um monstro que ato à ultima rédea
Sem mãos as mãos
Os pés sem pés.

Porque nada mais existe
Nada Nada
A não ser a febre de vencer a morte
Ó proibidíssimo acto
(mais valia atirares-te!, diz a lei)
Proibidíssimo acto de ser Fera Absoluta
De olhos às cambalhotas pelas casas
De olhos lançados como dados a suar vertigem
Noite ancestral rendilhada de vertigem
Olha as arestas tantas arestas
Um rio negro de ouriços.

E no caracol da escada entrecortada de abismo
Um rosto, uma voz.


Desceste por nós – disse-me. E uma mão estendida reconstruiu o meu corpo.


quarta-feira, 16 de novembro de 2016

os bebés também morrem sozinhos





os bebés também morrem sozinhos 
(para a íris)
I.

Da nevralgia da memória descem vagarosamente barcos de osso a esboçar sorrisos. Há medusas a dançar num balde de praia, veneno balouçado na aresta desviada das bocas, um grito embalsamado em bonecas de olhos para sempre fechados.

Pedras vivas chocalham imagens na estrica do meu sangue, e a dor canta-me um bebé e coisas assim... Um lençol num templo pequenino. Uma caixa de música. Unhas minúsculas cor-de-laranja. Água a escorrer pelo teu corpo num rio de verão. A tua voz jamais ouvida. A tua mão a apertar a minha. Ver-te sorrir.

Ah, do espelho absoluto - tambor da morte- um sanguíneo eclipse escorre caminhos para pias de bruma, e fica uma nudez aflita mordendo textos impossíveis, arrebatamento de um só despido pela branca geometria da loucura.




II.

Sugo a árvore placentária pela planta dos pés.   

Ainda assim não há ave que toque nos versos

irrecuperáveis                  sumidos                pequenos

versos em luto num bailado escabroso de asas.

No mistério denso da garganta

os bicos esgrimam a última luz das supernovas         

e há um leito de ossos moles e olhos de lodo

que não me diz adeus.

Há a voz omissa da morta

há a voz traída do laço que a gerou

uma jugular presa à corrente.



No meu encalço o fantasma do silêncio    

as veias que tremem a um afago do mundo

a íris que rodopia na fuga urgente ao rasgo imenso

as cinzas que me pertencem no vaso minúsculo

em que me foi negado tocar

comer devorar 

coser a lume no peito.


Agora é preciso quebrar

a coluna vertebral do pânico

roubar as pedras de um castelo ardido

ser fogo fendido para um qualquer alheamento.

É preciso desconstruir esses alicates macios

desmembradores da líbido do mundo

caçar todas as didascálias

toda a meiguice mórbida da noite.

E este “precisar de” é algo como uma perspectiva perdida,

uma imagem que não se registou.

É dizer “estou morto”

ou aceder à mudez de uma vela -

como se pudéssemos assimilar radicalmente a destruição de um ser.




Tentei fazer dos meus poemas um arquipélago longe do país da tristeza

Mas a solidão da tua morte dentro de mim aniquila a semântica de todo o gesto.

A solidão da tua morte dentro de mim cala todos os versos.

sábado, 15 de outubro de 2016

Mortivação em Supernova






Cérebro em percussão de estrelas sós.
De uma grande mala saem ânus de estrias largas como bocas de aves sem bico, guinchando, babando-se. O ribombar das paredes lança raízes que asfixiam os vagabundos Kerouac. Um grande lagarto abre-se na sombra dos possíveis que mingam em planos de deserto. Dos canteiros impossíveis que ardem nos casebres esquecidos, nas línguas mudas dos cristais encarcerados em grutas, no palácio inalcansável dos sonhos de que ninguém se lembra, agentes fantasma dos motores humanos e dos becos dos corpos sem esquina. É o emergir de grandes gruas, de catapultas de ninhos vazios, de vocábulos deserto em bigornas de sangue. Das redes da manipulação, a agulha da culpa cose em lume aceso as cinzas de um dizer de fabulosas aparições sem navalha. Restam sobras de uma esterilidade voraz. Resvala pela língua um cosmos de cascas inúteis, breves flores sem a memória dos astros, um espartilhamento das algas que são homens castrados pelo mar. Mortivam-se bússulas dentro do cárcere. Ah. Abrir janelas! Há que espantar a inércia de cada segundo que não quebra o relógio, seduzir raízes novas, moldar o totem. Forjar o nome em fornos placentários sem precipício.
Retirar o corpo de dentro do próprio corpo. Almejar a estroscopia de um movimento íntimo qualquer. Com meiguice. Cores concêntricas perdem-se nos céus sem morada. São olhos sem íris.
Ovos estrela estoiram pelo universo.