sábado, 26 de abril de 2014

Enxaqueca





Enxaqueca
 
 
O silêncio é a almofada onde se deitam os desertos e os sonhos viúvos. Já pousei sem cor os lápis que me deste. No maxilar do mundo tritura-se agora a minha cabeça.
Agulhas encapeladas e quentes cosem os neurónios uns aos outros. São cascos de navios que soluçam no meu sangue escuro e doente, ervilhas nas veias. Dentro desta água há casario a transbordar, mãos e bocas construindo pontes que não rompem o real, sobrecarregam-no de uma dor de ferro e histrionia de lagosta em panela de pressão. Um penhasco aos solavancos - grotesco sonambular de mil girândolas em mim! Trepam as moreias pelo céu aquoso e vermelho, esganam-se os barcos. Orgulham-se, odiosas, as cruzes altas das igrejas nocturnas. Soterradas, as nuvens brancas; aguçadas, as esquinas dos móveis do quarto onde ninguém pode entrar. Orgasmear-me-ei nesta minha realidade eriçada, se não quiser morrer. Porque a ansiedade está a trepar pelos meus nervos como uma faca eléctrica esfomeada, e as minhas mãos tremem assanhadas os furores psicadélicos de uma tempestade de canivetes que a dúvida excita. Tenho um mar insuportável dentro das veias, um mar cheio de destroços de barcos que o meu temor afundou, um mar de peixes sem olhos de ferocidade salina a soluçar tesouros.
 
 

sexta-feira, 25 de abril de 2014

O Soluço Da Fera


 
O Soluço Da Fera

 
Neste palácio de mar altivo as algas são redes, a vida estrangulando a vida. O vento, antigo companheiro dos pés no ar descalço e das travessuras temerárias da loucura, esqueceu-se de varrer as almas sujas e os ossos da morte  que vão sufocando os peixes moribundos. Não, agora mantém tudo no lugar, para ainda menos poder ser tocado. Só as sombras, que não podem ser tocadas, podem ser tocadas. É um vento que separa, esse facínora, um vento e o seu semblante de faca. Aqueles que andam no mundo com sabrinas escusam de coreografar mais bunkers enfeitados, os olhos morrerão no segundo seguinte à luz da lenha deste bote. Porque os lemes do medo são velozes, mas só percorrem círculos em vez de trespassarem a espada. Ela também tem tranças, mas ninguém vê, ninguém vê quanto vale a fragilidade de um punhal. Abro a faca no fundo do oceano e então ouço, apavorada, o soluço da fera. Alguém faz depois um altar para o soluço, e vêm rezar leões marinhos cheios de Ós maiúsculos nas mãos, portas de abismo com pestanas de pavor na vertigem das imagens. Mas eu não quero miasmas, nem tão pouco embalsamar o mar nos corações alheios. Tento ir embora, mas sempre o vento, sempre tudo a ser água submersa na contracapa da vida.
A memória é a substância dos olhos dos navegantes. Como uma corda que se lança para dentro, dias loiros escorrem do passado, dilatando um calor extinto. Nas mãos de água abrem-se sabres de primavera, véus floridos levitando os horizontes. Só ao longe um estrado imóvel, pensativo, esticado, apertando numa melancolia educada a cor dessa tarde... Na sua solidão de animal esganado ao sol, corre dentro de mim açúcar.

 

quinta-feira, 24 de abril de 2014

Nesse Natal, em Charleville





Nesse Natal, em Charleville


" La seule chose insupportable, c’est que rien n’est supportable. "
Arthur Rimbaud


As memórias que um dia sonhei minhas vão atravessando e diluindo as eras, estendendo-se como cordas onde secam, lentamente, os infinitos de outrora.
Ratazanas enormes parecem levar casas lá dentro. Penduradas nas árvores, bolas vermelhas com olhos muito azuis no centro; penduradas nos passeios, velhas afiando as unhas de talhar o fruto cortam a carne com as facas da paciência.
O vinho quente do norte da europa, uma feira branca e os arcos coloridos abrindo em gomos uma praça muito elegante. Será que já esqueceste o cheiro da canela? Por entre ruas cor de rosa mastigo, de mão dada, o torpor alado do maquinismo do passo, e os gatos magros fogem para trás de máscaras ostentadas por inúmeras placas misteriosas. Então vejo a ponte a aproximar-se e corro com o moinho ao longe para o seu braço solene. Inclino-me sobre o rio a tentar comer aquela luz que há nos olhos dos pássaros a morrer, um frio terrível e liso a ensandecer o corpo. A neve ensarilhada nos cabelos revoltos toca o colo das águas. Tenho-te a cercar-me todas as fronteiras, a ti, que não sabes, dedico esse mundo dorido de branco e de verde. Com uma ferida escarlate na órbita, a lucidez é tanta que entontece os sentidos. É estúpido ir ver campas, mas eu vou na mesma, como todos os outros. Chego à lápide com a noite. Si vous plait, laissez-moi entrer, je pars aujourd'hui. Com amigos que julgo eternos sento-me em cima das costas do banco, como que a calcar a morte, e tudo me é estranho na sua familiar aparição. Então, toda a exaustão se aproxima e observa a noite interna das vísceras mais sensíveis, uma imensa bigorna caindo sobre o mundo, oh terrível e sublime ópera humana, o tombar de todos os proletários do abismo, o eterno decapitar da Intensidade.
 

O LOUCO II





II.


 
migras no fio estelar para outrém. frenesim de colagens, imagens roubadas a depois com o anzol das madrugadas. alegre geringonça essa que queres levar contigo até à lua, a jangada onde se transporta o infinito. amas o focinho da vida, e por isso não admites rede. soutiens crescem nos ramos das árvores, frutos vazios da velhice de olhos estrangeiros. feras escorregam pelos trilhos a tentar morder-te a cauda, e tu, de escadote na mão e um estribilho nos lábios, vês as tuas pernas desenroladas a desfiar os caminhos do amanhã.
Lá longe, onde não viste, há salitre degolada pelas facas do silêncio, e a música é um vermelho que jorra farto das estrelas. Fazes asneiras com a gravidade da Terra, berram, de semblante lustroso, vai mas é p’ra casa! Como?, percebi mal, ouço óperas a colher antes que apodreçam a língua em debates de tv, verdades que murmuram as janelas cheias de berços. Mas nunca chega a lenha, nunca chega, como se houvesse uma esquina suspensa. Porque quase morro sempre? Quero um beija-poeira das fogueiras de mim, pensas, olhando o leite que escorre nas praças a arder, e só há vitrais nas igrejas, caramba!, não pode ser... Segues filósofo pelas frechas do leite até à menina que salta à corda do tempo e aí deitas-te, colorido como todos os bons, a ouvir cantar a matemática do medo.



Não há paredes onde escrever o passado




Não há paredes onde escrever o passado


Ardiam, altivos, os poços do amanhecer. Nas nuvens eles viam os brancos dorsos de sol trazer a esperança aos que não souberam dormir. Para as suas águas os longos corpos estendidos, os pés bailando nervuras nas bermas da manhã. Lontras brancas como mágicos lençóis aspiravam a luz dos homens até ao canto escondido do céu, a pele crua de gestos novos, ovos de febre liados aos pulsos das jovens impalas que habitam o bosque da promessa. Então, de repente, corrias o fogo pelo sorriso vertical dos espaldares que existiam para ti, fazias um círculo rápido até ao zénite de uma manhã qualquer e saltavas do tecto como uma ave ávida de vento. Ninguém gritava na rua. As casas não tinham paredes, via-se até ao fim da rua, eram casas claras cheias de mãe. E o universo estrelas trôpegas numa folha de papel, riscos amarelos que às vezes diziam olá.

Ainda sentes o vento daquela praia azul raiar-te o sorriso histérico, fazer-te as pernas esquecerem-se dos nomes das coisas e abrir-te muito os olhos dentro do oráculo fosforescente da água. Mas por mais que espreites nunca verás a guilhotina suspensa dentro do segredo do passado. Tu esticas a flecha até ao esgar do sangue, mas ela não atravessa o eco, só se perde para o futuro.


 

quarta-feira, 2 de abril de 2014

JOÃO ou Os Olhos Dos Peixes









João ou Os Olhos Dos Peixes

(para o Jas)


I.

 
Há cidades azuladas a nascer em sentido inverso.
Lúcios cósmicos espreitam nas profundezas
Temos que nos virar ao contrário para ver.


Os teus olhos são uma lente mágica.
Dão-nos a comer pássaros homens
E peixes que atravessam o espaço sem tempo.

 
Os corpos caem do décimo andar para a tela.
Líquidos de cor estranha riscam em sonhos
As veias estranguladas da cidade.

 
As aves sofrem, mas não se deixam apanhar.
O seu vôo é doce, terno e corajoso
E a mulher que caiu deixa o coração intacto na praia.
 

Se quiseres, deixa crescer o sangue:
Há que alimentar os lobos da memória.
O longe é a forma nua da tinta que sai do teu gesto.

 
Fazes com que me sente com os lobos.
O piar da angústia ouve-se na cor.
A pureza das mãos das bestas é tua.

 
Vê bem: não podes tragar o teu próprio movimento
Ele está sempre para lá de ti, da tua fome.
Tropeças na tinta porque os peixes são os teus olhos.

 
Salta para dentro dos olhos, dizes.
O ar é vivo e traz vermelho o sol infantil.
O teu gesto é a música de um sonho que tive no futuro.

 
Sorves a seiva do mar pelos lábios do mundo.
Sondas a memória da cidade sobre as águas
Porque o fundo é do tom vigilante do mistério.
 

Quase te afundas, mas nasces ilha na tela que te vulcaniza.
Porque toda a água te acompanha desde que nasceste.
Alguma vez o desejo te espartilha?

 
Por isso as bocas viajam contigo:
São o prolongamento visceral dos olhos.
As bocas são os terminais do desespero de quem sonha demais.

 
Estilhaços de amor encrustam-se na rede das visões.
Como condensar todo o desejo numa só vida?
Danças em êxtase para fingires que o tempo é maior.
 

Os sóis ocultos lincham a fome estraçalhada pelo vértice da luz.
Convoque-se depressa o alongar do corpo na fúria do pintor.
O cheiro da tinta é a febre que te sacode para além das nuvens.





II.
 

Rodas arvoram cidades por detrás das janelas do mar. Olhos graves espreitam o amor no avesso lupino do corpo, a carne entre as roldanas a inventar o tempo.


As aves têm inveja dos peixes, as aves são homens disfarçados com patas leves de fugir o sonho. As aves não querem a lassidão da terra, têm medo de ficar. Os peixes não, são uma espécie bela de ser olhos, são caixas transparentes e brilhantes onde a viagem viaja. Por isso não se pode segurar os peixes, eles escorregam pelas veias umbilicais do mundo no fluir desatado da hybris. E tu - cosmonauta do mar, nem peixe, nem ave, tu - pintor dos nervos que a noite quer largar, toureias o desejo pela estrada difícil e oblíqua da cor.