terça-feira, 7 de maio de 2019

Notre Dame


 
NOTRE DAME

 
A torre caiu a torre mais alta
O ventre em chamas agita-se
Escorrem as pinturas, alma de séculos,
Pelas tuas pernas
Tomba a cabeça a arder
Tombas tu, mãe
Os olhos labareda
Os seios de escuridão.
Não morras, mãe, não morras
Nós somos egoístas e queremos-te sempre
Só o esqueleto que seja
Queremos-te para nós.
Como é horrível a tua caveira, mãe
Luar em brasa
Osso vivo em fornalha mordente
Mas não morras, mãe
Deflagra o teu sangue alto e forte
Em feixes de brilho rubro
Que ainda assim vives, mãe
Sim, tomba o teu orgulho
Mas esquece o orgulho, mãe
Nós somos egoístas e dizemos
Mesmo destruída não morras
Estende para nós o olhar buraco, mãe
Os ossos negros sem pupila dentro
Estende o teu olhar que é ainda olhar de mãe
Nós queremo-lo mesmo assim
Escancarado de breu
Em estertor arrebatado
Ainda nos olha
Como nos olha
Ainda e sempre
Olha para nós, mãe
Olha para nós, mãe
Olha para nós!
Vivemos sustentados pelas tuas mãos
Pelo teu colo eterno
Sem ele não temos ossos, mãe
Sem ele resta-nos o futuro
E o futuro é vazio, mãe
O futuro é um monstro de costas
Sem ti não tem mãos
Não tem pés, tomba o futuro
Tu és mãe do mundo, mãe
A tua presença torna-nos reais
O teu abraço torna-nos possíveis
Sem ti não há possível, mãe
Nem rios nem macieiras nem meninas-maçã
Eu só quero o futuro para to dar de presente
Eu não quero nada se não for para ti, mãe
Não morras, mãe
Não morras, mãe
Não me mates.
 
...
Tens nuvens nos olhos, mãe
És deusa de cataratas ascendentes
Mas não cegues, mãe
Eu sei
Eu sei que são os sonhos que te negaram, mãe
Todos os tesouros que te roubaram
A vileza do mundo que não te soube amar.
Eu sei que o fumo e a cinza foram gema
E renda e rubi.
 
É longo ver-te arder, mãe
O fogo lambe-te os orgãos as veias
O gesto
Mas nós somos Tão egoístas, mãe
Somos tão teus
Que vemos ainda essa tua dança
O grito do lastro febril
O esgar do esqueleto ardido
O sismo no dorso rebentado
E ainda e sempre as tuas mãos
Os teus olhos
A tua água grande, mãe
Nós vemos e nós existimos
Estamos aqui, mãe
Não te deites, sofre de pé
Consumida, delirante
Fendida, ardente
Mas nunca sem sonhos
Porque nós existimos, mãe
Sofre de pé
Porque nós existimos
Sofre de pé.