sexta-feira, 14 de julho de 2017

Taumaturgo


TAUMATURGO


Pensei que este seria o ano do grande esquecimento
do aturdimento da pele, da apatia.
Permanecer imperturbável
dessensibilizar fluxos traidores à causa, pensei.
O silêncio seria o pacto dos meus passos
serenos como pombas velhas
e à noite adormeceria escura de sonhos e lugares
como a água suja de um poço qualquer.

Até que vieste tu
taumaturgo marinheiro de deserto
colher os astros de salitre dos meus olhos.
Pé de demónio com pautas nas sobrancelhas --
tu, uma cria musical a romper circunstâncias
a esculpir circunstâncias
com a luz dos dedos no areal que me sugaste do céu da boca
e na grande insónia que descravaste das falésias do meu ventre.

Do olho aberto da guitarra se verte agora a minha febre
válvulas de fósforo precipitando cantos-fogueira no breu.
Minha musa musical vermelha
em mim acendes um canal de papoilas até ao sexo
qual puta mágica de circos lentos e folias
com a voz a poisar-me em toiros de noite sem rede
concentrando nos chifres pedras rubras e aguçadas
e sombras de ombros e feras esquecidas
na corda excitada de um latente cadafalso.
Porque esse teu perfil quase masculino assusta-me
Porque as tuas cidades interiores são labirintos nos meuspés
Porque me solves o mundo em êxtase, o núcleo escondido
nas horas em que te abro olhos nas costas
e interpreto feridas que caem dentro do teu corpo.

De que é feito o céu que nasce dos baloiços?
A criança salta nas ondas do teu cabelo desgrenhado
Quer trepar-te tonta pelo caule desse intelecto estranho
que percorre as estradas solitário e vadio
e depois se embaraça tanto ao chegar a mim.
Quer partir nua pela Galiza
e oferecer em cada esquina um carnaval qualquer
em cada acorde um feitiço de cordas 
um arrepio de vida a arregalar janelas e arcadas.
Quer morder este milagre sem ter história nas mãos
e em Montemuro perseguir a borboleta única
que no teu sonho o vale respira.

Vagabundo
A ti faço renderem-se os meus mapas 
o meu forno o meu sudário
Por ti volta a dançar a catapulta dos meus sonhos.



quinta-feira, 13 de julho de 2017

Ouvir-te


Ouvir-te


Felino ébrio a percorrer telhados
num descontínuo comboio esfaimado de astros
que transportas nos teus ombros de mulher    

Há outro plano, instantes fixos
o roçar de um horizonte imperturbável
um torpor assombrado no remoto dos sentidos

Algo essencial se aproxima de um centro vivo
que permaneceu inteiro
e eu volto a ser magnífica
Fénix babando de sonho o cavo horizonte
como uma asa noctâmbula e pasmosamente aberta

Essa voz devora assim
os gomos mefíticos da memória
e o som estende a órbita utopia
até à criança que me queres dar na boca

Para lá dos signos do temor
lança a carta geodésica mágica
sem caleidoscópio de inverno

Da fogueira de membrana nova
a respiração da mente dos bravos
e uma clareira coroa a alvorar o coração.