sábado, 17 de maio de 2014

DESRAÍZ






Não sei com que traços se detalham estes sonhos indecididos onde as veias são como linhas que agulhas bordam na distância de um quarto lunar sorrisos inauditos de primavera.
Deixo-me cair na brutalidade resoluta que a terra à sombra morde quando é possuída pela fertilidade da lava. Porque me dás vontade de perfurar cidades de frente, abrir o sol e mastigá-lo no peito, desatar granadas de estrelas que estoirem com a hipocrisia dos passeios de Domingo no segregar de constelações a dardejar novas palavras. Porque estou ávida de presentes futuros, de te lamber os olhos, os dedos um a um até crescerem raízes da tua dor nos meus cabelos, desgastar as unhas a arranhar o hemisfério oculto do teu corpo que cospe grinaldas e se esquece de dizer “sim”.
Passos dispersos alargam a impotência da minha garganta de árvore, extravio o tormento pelos esgotos da carne sideral, mas estes pés não se movem, sempre as raízes, e tu não queres saber. Rasgo-me uma avenida excruciante até à boca, vindima masoquista em campo gotejando gárgulas de frio sobre a tua ausência. Maldito maldito, repito na fala da vulva, estremecendo oásis de quase no regurgitamento de um longe renegado.
Deste vulcão sem esfíncter convoco o silêncio pela pele repuxada do desespero . Apalpo as vértebras do meu leito, devolvo as cinzas, revolvo revólveres girandolares nas cúpulas de um desejo incomum de torturar os degraus da noite até todos os fantasmas me azularem com despertares a abertura das mãos.
 
 



domingo, 11 de maio de 2014

Num café qualquer chamado Nenúfar





Num café qualquer chamado Nenúfar

Conheci-te ontem em frente a um licor Beirão. Vieste de vestido violeta, uma ave exaltada no ombro e o colo inchado de humanidade. O teu corpo brilhava como um Ártico nocturno e dançavas livre pelo café com palavras sem pronúncia. Passada uma hora pedi-te:
Dá-me a saliva dos teus gestos para plantar sementes de cometa, o mundo está faminto de novidades orbitais. Medram hospícios na nossa carne, abismos fugitivos que acolhemos numa terna violação das nossas letras. Há uma profusão de palavras e de números nos quadrantes do real, traços, geometrias, logotipos, slogans, na esquizofrenia da ocupação totalitária dos meus olhos. Roçam os bigodes da raiva no meu rosto. Vês?... Dá-me o pano aberto, o sem Outro, o setentrional, a vida e a morte numa caneta carnívora que não conheça a literatura. Dá-me a aparição antiga da existência, o céu nu de olhos, bicicletas e rodas dentadas intoleráveis. Peço-te: afasta-me os cabelos do mundo para eu afagar a pele das estrelas e ser um monstro puro a rasgar contigo, aqui, a franja colossal do universo.
 
 

sexta-feira, 9 de maio de 2014

GIO



GIO

(para Giovanni Collazos Carrasco)

 
Um assombramento cerca-me de fibras amorosas

a flôr cardíaca torturada.

Arde(s)-me nas veias um vulcão antigo,

a carne alarga-se ao teu jeito de cometa.

Não sei de onde partiste.

A tua casa é uma nuvem de febre distante

e isso dá-me ganas d’ impossível

na luz pulsante de uma cidade imaginada.

Devoro lentamente a tua voz

sob os astros ferventes em lágrima.

Abro a boca para engolir as tuas mãos

cheias de sonhos e de cinza,

e me fica o desejo afagando o ar

em arrepios inefáveis de utopia.

O poema é como uma casa de nevoeiro.

Entro nua no silêncio,

estendes-me a tua pele para me deitar.

Adoro-te sem te ver a fronte

e saio certa de que inventaremos um país para nós.

 
É o súbito atravessar de uma linha,

um pulso estendido face a uma noite partilhada.

Entre bosques de ternuras olvidadas

e cadáveres em formol dentro da terra,

se acende numa palavra consanguínea

o tes'ouro do laço "rojo" que esgana o medo.
 
 
 

Campos





Campos




Numa serpente alada,

casas velozes a perfurar a noite.
 
Comboio suspenso na bruma do devir,

máquina que na névoa adensa a revolta.

Nos trilhos da humanidade traída,

uma ave de rapina pacientemente busca

o vento do lento desmantelamento do real.

Sobre a cinza destes crepúsculos tristes,

nesgas de sangue arrepiam os céus

no travo ígneo da ira imensa.


A lua dá-se no suor dos campos,

covis de uma acidez sem nome,

poços anil de enxada magoada.


Porque um rio afoga os seus peixes,

no grosso leito acolhe os cadáveres,

e passa à superfície como uma pele inocente,

acariciando as ervas e as nuvens.



Há bosques de sangue claro nos telhados do meu sonho,

mas sobre a tela esverdeada

apenas brisas rasas.



Pianos de Mar





Pianos de Mar




Banhado em pianos de crepúsculo


um estertor musical sanguíneo.

Piano com cordas de espuma

as tuas teclas maníacas são maníacas -

tocam o timbre do terror nas falésias sistemáticas do mundo.

Ébrio rebolar de ondas-bocas d'areal

espumas quentes mergulham o grito.


Teclas longas como pescoços no cadafalso

ensaiam um medo líquido.

Estou doente de algas.

 
 

segunda-feira, 5 de maio de 2014

Danças de Borodin



Danças de Borodin

 
Enxotas a ave da sede que pousa no beiral da tua pele primeira. Da música, lembras a fábula do amor daqueles que crescem folhas desejantes em todas as direcções da Terra. E lembras o calor no longe de um espaço que se expande em ti como uma flôr grande demais. O desabrochar dos passos vai desprendendo miragens ao tecer-te bordados directamente na pele, corpetes de cetim cosidos nas costelas sagradas da memória, e é do avesso que adormeces a espera em vozes de oriente e crepúsculo.
Às vezes, já sem cuidado, evocas as noites em que ela deixava cair o vestido e havia vincos terrestres a encurtar o mundo. Num relance, uma só ponte para o infinito inteiro, a verdade à distância de um beijo. Mas todos os círculos perfeitos são fatalistas e então pensas: talvez a beleza esteja nos grumos textu(r)ais do real, na heterogeneidade do cinza, no sangue que escapa e suja a camisa. São rasgos de céu numa cama escura de deserto, feridas imensas com olhos soberbos, formas sulcando espantos no areal caótico das cidades da carne. A lança faz o mundo dar-se à consciência... Onde se desdobra a fonte do poder?, onde o colírio que incendeie a leveza para o alento das noites brutais?
Modelam-se luzes em mim, os tambores abrem a juventude para fora e expurgam o lamento das flores coaguladas. Rios de ser extravasam os dedos e a espuma das feras numa tecelagem encantada de sonhos nativos e quimeras de gazela. De súbito, redes de ouro e prata sobre um mar de estrelas a coreografar o Desejo, saltos de linfa caçando florestas longínquas no corpo oblongo da Vontade. Porque algures no útero dos véus cor de laranja, a violência dilata os meus olhos para o dourado, e isto de ter sonhos na língua nua desata a correr louca e velozmente até ao zénite desassombrado da fantasia.