segunda-feira, 23 de dezembro de 2013

A FEBRE





A FEBRE



as mãos da febre entram em volúpia nos corpos desalojados. moldam crianças nos rostos, acendem fogueiras nos olhos.

caçadora-irmã dos lobos que saltam das veias, a febre faz o medo afiar-se num outro espaço ôntico e os pés estremecerem numa casa de novos partos.

os membros de bronze fundido agarram as horas pela nuca em banhos de gelo suado. querem alcançar o escadote que leva para além das clepsidras.

a febre devora os náufragos. envolve num estranho carnaval aqueles que perderam todas as máscaras e se esqueceram de tirar a gargantilha.

as patas da febre sulcam trilhos infernais na voz. aurora boreal estilhaçada no corpo, corrompida em fios quentes de tecer infernos e outras místicas alcovas.

mas a febre não é vermelha, a febre é negra como a boca dos velhos. a febre faz os dentes medirem o vazio entre as estrelas.
 
 
 

segunda-feira, 2 de dezembro de 2013

O LOUCO






O LOUCO



ilumina-me. pirata desenfreado do luar. alegre esfumada figura que sobrevoa o puzzle das linhas do horizonte. de um azul terno morrem os poetas, com o ventre a rebentar de cometas e uma lua branca sempre a fugir pelas pernas de tanto extenuar o sangue. mas a luz convexa da pauta acende-se nos neurónios lupanares do louco, navegante do etéreo e do olho interno que dói. os corvos serpenteiam borboletas de chuva sobre a tua cabeça, mas tu não sentes, porque tens um chapéu feito do amanhã da aranha dos sonhos, e não vês, porque as gotas são espelhos ancestrais a luzir os segredos da vida, e no ar há um xadrez por inventar, e no silêncio trilhos de espadas que dançam no esgar dos que deixaste para trás. agora segues pela beleza até entonteceres a hipocrisia biliosa do mundo, de casaco rasgado e a alma rota de estrelas até ao fundo do caleidoscópio. oh louco. se és louco, ilumina-me... ilumina-me... ilumina-me.


 

terça-feira, 8 de outubro de 2013

INFUSÃO







INFUSÃO



orquídeas mergulham no breu esverdeado do meu sonho. o verde líquido das suas folhas deambula névoas na pura respiração do segredo. esfumam-se as pétalas terríveis e ternas, diluem-se os doces dedos de leite, penetrando o sopro aquoso do lago. suspensos nadas negros de ternura nos escombros oníricos do ser mais puro.

oblíquos impossíveis, folhas lâminas rasgando suave e inequivocamente o ar do poema. escondem-se raras auroras guardadas na espera a que o papel obriga. querem voar, como os pássaros penumbrosos e soberbos no dorso da manhã. mas os sonhos são desenhos a tinta da china sobre uma folha de nevoeiro.

as folhas cortam a luz e o real, ladeiam com amores aguçados as gotas lânguidas do medo. os sonhos devem tocar-se com dedais. brumas cantam o silêncio de tempos imemoriais, lugares perdidos do etéreo e do assombro.

onde me posso perder? dá-me o teu ombro-esfera de brisa e de sombra, a pérola do teu sussurro. o repouso da lua é aqui, entre o mínimo e o imenso, ninho da onda suspensa, reino do deslumbre na tua constelação de inefáveis.

está tudo quieto. escuta. vê com os olhos nus e a alma aberta a nobreza do mundo. sente as suas mais subtis flutuações, o devir da quietude. o real absorve-te as pupilas no seu caudal de aguarela - todo o ser é infuso.
 
 
 

segunda-feira, 15 de julho de 2013

O Encontro





O Encontro



Um lento desenrolar de chuva na tarde fria

Escorre pelo meu corpo,

Como a alma contida de um lobo ferido

Com facadas de luar.

Flores de névoa desmaiam nos caminhos,

São as incontáveis gigantes esferas

Que rolam em mim,

São as malhas vertiginosas teias

Desencantando as raízes inchadas

Do meu eixo torcido no meio.

A mola encrava nas esquinas do ser mais estreitas.

Os acordes de música silenciosa na noite invertida

Incluem-me no leite da matéria,

E eu já sinto o tédio de não poder haver mais.

Até que surges tu de dentro de um cacto leitoso

Qual borboleta travessa,

Com a água toda no teu olhar moribundo

E labaredas nas asas dos pés

E eu atiro-te um beijo de chumbo.

Uma tempestade absoluta alaga a pele,

Voos húmidos escondem a hora escura.

Terna a fome de um sorriso meu

No beiral da morte mais crua.

Há lareiras a aninhar-se na minha alma

Orgasmos longínquos

Que clamam na calada matricial da noite:

É fresco o sangue que habita

Nos caules profundos do inconsciente,

Como um comboio mental em andamento

Dentro da estação da imaginação,

Como bolsas de carne viva em auto-violação,

Como a poeira que salta das bocas,

E lembra o beijo vaporoso e cinzento

Em que me afundo continuamente,

E te bebo, te respiro,

Te engulo todo

No ápice infinito da evidência,

No teu gemido espectral de poente louco refractado

Na noite onírica ancestal.


É um buraco enorme o que me resta.

Um monstro buraco que deforma todas as imagens,

Simbologias, modos de ser por dentro,

Gestos de mostrar por fora,

Ideias entretidas a ser pessoais.

Um buraco de onde retiro a essência do vácuo,

Medito

E adormeço nua nos teus braços.



quinta-feira, 27 de junho de 2013

Como Nós






Como Nós


Não sei se é húmida a lua ou o sol
em beijo que con_centro na minha mão.
A ausência aperta-me os sentidos até doerem os infernos -
candelabros de víscera em brasa fixados
nos doces macabros hemisférios do horror.
Geme a saliva saliente entre as violetas da nevralgia.
Queimei o ventre, sou sem membros,
mastigo o lodo de olhos semicerrados.
Catapultei o mundo para o exílio de mim,
e deixo os lobos tragarem
com dentes lentos
o tempo poído em que me
morro as âncoras.
E nós? Onde a casa-alçapão para a loucura?
- qual o sinal na estrada a indicar o escândalo?,
o desvio?
O espaço roda.
Não somos nós.
O medo dança.
Não somos nós.
Nós apertamos sois que giram com as mãos
quietas a arder,
tocamos a rosa no flanco dobrado da rua deserta
e em alvoroço acolhemos a morada em potência que é
a nossa.
Depois, suaves esquecidos,
confundimo-nos no ninho do medo,
e somos qual cama espetada com um palito no céu.
 
 
 
 

quarta-feira, 26 de junho de 2013

Casa da Música






Casa da Música
 
 
Escadas lume_nascem a estreia do mundo. Riscos de sombra cambaleante passeia o núcleo para onde choverá a música que mora no futuro. Gigantes ouvidos sobem as escadas, degraus de vidro em lago levando ao tecto do sonho fosco o magma gelado com que se cozinham as cabeças. Jovens e velhos de génio pela lei dos músculos segurados têm na base venenos e punhais, uma pulsação desorientada e insalubre. Num esforço disfarçado, agarram ao corrimão o carácter que não existe, sôfregos da magia das pedras que se casam numa clave. Esquecer, enterrar a sepultura e os olhos cancerosos, ser água branca e terra ideal, tesouro sonoro em praia sináptica.
Olho: são medusas que sobem dançando as escadas aguadas, medusas que se abrem para comer o som boreal escapuli_dor do tempo.
 
 

Grito de uma Cidade Nua





Grito de uma Cidade Nua


(para a Sylvia)

 
Uma imensa noite engole o mundo. Uma noite redonda e perfeita.
No vazio rolam, como cabeças, os astros vagabundos.
No meu olhar eles gravitam, salpicando de sangue a orla dos oceanos.


O mar está deserto. Infinitas estrelas brilham, vermelhas e vazias, à superfície.
A sua luz é oca, como uma boca que se abrisse para lado nenhum.
Sim, o mar está deserto e coberto de feridas. Não há língua imensa que as cubra.


Nas cidades habitam monstros. Eles destroem todas as esquinas dos amantes.
Tudo resta liso e azul, um espelho reflectindo os horrores do mundo.
Nele se espelha o meu sorriso infantil e todos os beijos que ficaram por dar.

 
Agora o vento dança livre no coração dos antigos templos.
No seu núcleo despovoado ardem grandiosas taças de gelo.
Nelas se suplicia a Vontade deixada ao Pó, deus da fome universal.

 
Há sombras de árvores sem raiz onde antes existiam bosques.
Elas movem-se como fantasmas envoltos em bruma.
São colares feitos de troncos estrangulando os últimos sonhos do mundo.

 
Ninguém mora aqui. A humanidade partiu, levou-a um imenso abraço.
De mãos dadas correram as crianças do futuro, em busca de algodão.
Só o eco da sua voz restou, perdido, no meu coração.
 
 
 

Rede

 
 
 
 
REDE
 
 
 
Uma mímica marítima vagueia esse ar vadio de Inverno branco. Junto à pele dorida dos barcos soluçam cais de agonia líquida. O vento: vermelho espectrizante – que o farol é como um circo rondando os corpos pelo vértice repuxado do céu. E o paul  longínquo para sempre lancetado estrangula a areia na ânsia inútil de ser trapézio sobre o mar.
 
 
 
 

Breve impressão do NOSTALGIA, de Tarkovsky



NOSTALGIA



Cantam os cães nas alvoradas da bruma. As peles loiras da planície encantam o homem que diz não te ver no bravo silvo da malignidade dos alvos que são sem pernas. Tenho que cortar o arrepio dos dedos para viver: esmaga-me a luz da tua nostalgia. Há clarabóias antiquíssimas como lírios sulfurosos a esconder a água, e proteger o amor dos teus olhos de chacal é a ordem inscrita no silêncio. Algodão doce confunde trevas nos teus cabelos e a lama perfura o sentido e o tecto da tua memória. Cálices vertem hélices em outrora de neblina, porque a Rússia não deixa ver, a Rússia não deixa ver, e o vento branco planta a cruz na concha das crateras.