segunda-feira, 19 de março de 2018

Tinhas razão, Modigliani


Tinhas razão, Modigliani
 (poema a duas vozes)

1- Ato gravatas à esfera umbilical
    Gravatas vermelhas ficam-me bem.
    Dentro os pescoços urinóis
    Dentro os pescoços de areia
    Os pescoços dentro das paredes
    Entupidos de olhos não se desmantelam
    São a coluna da casa
    São a chave que faz abrir todas as portas
    Um a um uma chave.

2- Ossos vão e vêm...
    É a própria mãe que os traz
    E à minha frente os rilha.

1- Quando me apercebo molhei o sofá
    Estou para lá da poesia.
    Porque o medo É, percebes?
    Dinamite imaculada
    Perfura a esfera
    Triangula a febre e a escada.
    Bebo urina num pote de cristal
    Engulo os olhos continuamente
    Puxo a escada afaga tectos cheia de esperança
    E espero que resulte em pescoços.

2- Há aves que só fazem ninhos no céu da boca
    Só se guarda um filho comendo-o
    Amén.
    Ovo de ossos com carne
    Festim magoado.
    É engraçado como as entranhas saciadas
    se habituam à dor
    Mas fazem encurvar subtilmente os lábios.

1- É pena ousar desejar-se aquilo que não nos pertence
    E ter de pintar as paredes de verde para estar entre as árvores.
    Mas sim, é um prazer sobreviver.
    Estendo a mão, fecho os olhos e estico muitíssimo o pescoço.


domingo, 18 de março de 2018

Sonho do parto de uma criança morta



Sonho do parto de uma criança morta



I.
Largo
Suplício de não
Respirar
Nos braços pedaços
Um proto-sorriso morto
Comprido lençol
Comprimido.

O caminho num sulco
Entre elevadíssimas entranhas
Montanhas viscerais
Sem minas nem poço
Uma seca língua escorrida
Uma serpente presa na pele do Inverno.

II.
Sem muros chega o engulho da morte
Solidão pétrea subterrânea
Na infância que apodrece pelas pernas
Ou uma dilacerada vertigem
Rachada à espada como uma vulva.

III.
No exílio catatónico da chaga
Música selada no cimento de uma rã
Carcaça mirrada sem estrelas de permeio
Coração de areia chumbado no silêncio.

Nas mãos de espelho uma velha
Sem carrossel nos sonhos
Gruta de nariz na terra
Distopia de bicho avariado
Que não serve ninguém.






sábado, 17 de março de 2018

Foz


Foz

Havia um mar grande e branco
Imenso respirador de estrelas lâmpada
Candeeiro líquido da noite.

Nos olhos das rochas as unhas deslizavam
E as pupilas vergastadas exaustas
Eram olhos abrindo auréolas d'água no breu.

Mar, mãe maior
Todo o meu corpo são letras de água
Um útero dentro de um útero
Dentro de um útero...
Laços indeléveis circulam nos mundos
Vertebrosos nexos universais
Ambulantes nós maravilhosos.

Porque navega em mim um ser diferente
Música obscura algures por dentro
Que segue a tirania mágica da vida
E urde no sangue um tempo novo
De massa nua e incerta
Um ritmo infante.

Mar, amante bravio
Nesse teu colo materno e selvagem
A experiência masculina universal
Colhes e envolves os corpos
Em cordões de estrelas e de peixes
Grânulos puros de matéria profunda
E do frio onírico do esquecimento.

Uma mãe guarda o seu filho ferozmente.
Que sons ouve quem se está a afogar?



Queimada



Queimada 

A terra dá à luz pavios
A terra é uma vertigem ao contrário
Com peregrinas mãos no meio.

Nascem bichos brancos entre as labaredas
Serpentes arcaicas sob o fumo respiram árvores
Na galga dos olhos que se abrem para ver a morte.
Sob a terra um uivo sacrificial acende casas íntimas
A vida e a morte cheiram dos dois lados da janela
Enquanto uma mulher se esgana melifluamente no ramo em flôr.

Pelo sopro da montanha movem-se os milénios --
Éguas calcinadas montando os galhos de um azul veloz
A fazer resfolegar os poços fecundos do sol.

Pela estrada sonâmbula de carvalhos
A desorientação de um cavalo em carne viva.
Três moscas nervosas lambem-lhe as estrias
Escorrem-lhe o húmus pelos cascos pútridos e belos
Escorre a beleza pelos poros afora.

Depois
Enterramos os dentes até às raízes do fogo
E dele sugamos a excelência da terra maldita
Onde nenhum carvalho morreu.