Carta a um
cigano que se apaixonou pelo mar
Entro no agasalho intempestivo de um índio perdido
Eras aninham-se no meu cabelo
Serenas correntes feitas da carne do vento
Tranças bravias brancas e verdes
Trazendo em mim o langor bárbaro do tempo
E a suave maldição de uma rizomática esperança.
Dentro da casa balançam sombras de árvores inomináveis
Frutos antigos delírios em duetos inefáveis
Imagética montanhosa de espelhos nus.
Ajoelho-me e engulo religiosamente as eras
O prazer ensimesmado de quietude e assombro
Como se ele tivesse criado a respiração do mundo
Como se o abrigo fosse pequeno para alimentar os deuses.
A lanterna colorida incendeia uma criança cigana
O coração imolado de uma febre distante dança
O erótico maestro florido dos campos sorri.
Ele esconde-se nu entre finas cortinas
Instáveis labirintos mentais.
Ah ser-me ópera nas ruínas dessa alma travessa
embebida no ópio dos caules secretos da lua
Ser-me astro distendido até ao estertor dos campos
Elixir de um xamã entorpecido pela embriaguez do amor.
O segredo é perpendicular ao pescoço de todos os que já amou
É uma lâmina que goza com os sonhos do passado
Por isso tive medo
Por isso guardei o segredo num búzio.
Porque lá dentro não havia tempo.
E nunca há tempo sem que a terra se revolva
E venham os tanques e os tractores
A deformação espiritual dos músculos
As guerras choradas por coros de musas que se afogam
Interminavelmente.
De uma imensa e breve brecha ele recolhe uma imagem:
O orifício de um sonho inviolável
O olho casulo de onde partiram barcos de céu
Grous de espuma a levantarem vôo do silêncio que crescia dos
pés.
Tremiam membros doces no florir da areia que ocultava o
segredo.
Um roçar onírico no seu cabelo-fenda da noite
Cântico de ossos abertos para os espasmos milenares dos
amantes
Ávidas coxas da Terra em translação.
Lambo-lhe, devagar, a língua toda até ao falo
Por dentro há uma ranhura exposta longe do medo
E um corpo fita-de-Moebius que brilha esplendoroso
Até que as crias dos castanheiros sejam baloiços de embalar
nos búzios
as crianças belas que há dentro da morte.
As patas sensíveis das aves mergulhavam nos fios quentes das
ondas
Ele lembra-se.
Agora há que comer o sangue azul que cuspi nas nuvens
com que me fixei os pulsos à virgindade.
Porque me quiseste (se), queria escrever-lhe.
Temo a beleza do bico longo dos pássaros
Tanto quanto desejo torcê-los em clave de lince maior
Às vezes anseio o gesto que enlaça o impulso do géiser
Às vezes grito o medo dentro dos dentes
E já lhe disse: temo.
E esse universo pequenino de galáxias com cortinas também.
Ele sabe.
Perco-me nesses labirintos de cactos e de seda
com vulcânicos sóis vermelhos no centro.
Dormirei enredando as mãos na pele da serra
que embebeda os corpos celestes.
É o bago rubro de uma trepadeira
Ao colosso de Rhodes ela se enrosca
E, no fim, sacrifica-se...
O vento faz o mundo multiplicar-se.
Fui vento, talvez
Para beijar as omoplatas das flores,
Correr como um lagarto do deserto
até lamber o suor da próstata que incha.
Plantei árvores no meu suor
Quis dar-lhe a comer o fruto ébrio
da minha soberba exaustão espacial.
Penso que deveria vender-se suor em frascos de cristal.
Com ele regar o cabelo
E as nádegas bem abertas,
Com ele colher sinfonias.
Acho que quero a minha carne suspensa
como folhas numa árvore
Dar pêssegos pela extremidade dos dedos
Violar a árvore de gatos verdes pendurados pelo cachaço
Bichanos vivos e imóveis fitando os ramos e o miolo do céu
Folhas-gato tiritando nebulosas no seio do frio.
Neste vento de amoras sinápticas preso em lanternas
Sou um felino mover-se no cruzamento feroz
das suas grandes pedras internas.
De caneta fálica nos dentes
Vejo os diospiros remoendo as estações –
Choro a mórbida solidão dos frutos.
Masturbo-me sem os dedos da cortesia
As línguas vermelhas das cortinas desejam-me mulher.
Vira-te de costas
Não mais ouvirás palavras.
Ah o núcleo sensual dos objectos
Corpos etéreos roçando uma face saciada
A minha face
Que desconheço.
Que é do meu amor?
Os seus belos olhos vendados
E foi só um orgasmo de píncaros serpenteados
num horizonte vertical vermelho.
A vírgula da impotência pede totalitarismo.
Sabes
Tudo o que me apetece é dizer que te adoro
e calar a gaze todas as bocas do mundo.
As bocas da luz são buracos comidos pelos insectos
Aqueles que sabem masturbar-se
Comem a palavra furtada ao sono da folha
Perante o onanismo permanente da Terra.
Mas o humano constrói casas,
Vasos e highways,
Não há flôr que lhe baste cosida a ouro nas vértebras.
Somos como gatos vívidos a rebentar ternura pelo ânus
Tossimos réstias de estrelas
E são essas as cordas do baloiço cosmogónico em que nos
sentamos.
Pensamos então que tudo são linhas nas artérias e na cabeça.
Mordemos a caneta. E não nos vimos.
Regressas.
Balanças a saia até fazeres cair a próxima galáxia do tecto.
Raios partam todos os horizontes
Especialmente os desta casa de mato por cima do céu
Que eu desejo até as raízes de pedra
fazerem derreter monstros escondidos.
Homem belíssimo com braços de fogo,
OUVE:
Há no fragor dos monstros uma rosácea aberta ao segredo.
Dos teus ombros ondeados de mar masculino
Nascem mil Cassiopeias
Rasgando a geometria das estrelas.
Elas consumam-se abertas em mim.
Por cima do meu corpo
Infinitamente acima da via láctea
Um cabo eléctrico afiado rasga as pupilas do tempo
Varre o vazio das constelações.
É essa violência inconsolável dos contrastes que faz
perceber.
Agora está quente, duas velas acesas.
Gatinhos negros e ternos adormeceram
Indestrinçáveis novelos entre os nossos pés.
Porque me quiseste (se).