domingo, 10 de julho de 2016

NA ORLA DE UM NINHO



NA ORLA DE UM NINHO 
                                                                                                                                         
Saxofones em cinzas na lenta rebentação. Observatório de aves brancas. Quero esconder-me nas suas asas fechadas como filha eterna, e quase esqueço o negro que cruzo em teclas no trejeito dos pés exangues que arrastei pela orla da cidade, quase no extremo desse fogo das estrelas mortas. Deixei de poder entrar dentro das cidades, todo o corpo do meu olho é orla. Sou a puta das bermas de tudo o que existe que já foi vazado. Saí travestida e chegam a confundir-me. Dou-me meu porque nunca poderei ser meu. Isto de ser aos pedaços e me ser negada a maternidade não o posso dizer às aves. É engraçado como sou gostado. Sempre na berma. Mas sangro. Se dessa minha menstruação interminável que me corre pelos pés se ouvisse um jazz qualquer... Um piano brilhante e dissonante à boa maneira daquela decadência própria dos que nunca quiseram ser extravagantes. E a seguir, da inaudível lágrima que se contém até ser este mar, a estridência desse saxofone no preciso momento em que se contém naquelas notas graves em que se ouvem os gritos das conversas mais curtas e vermelhas. De botas e meias nas mãos atravesso a barreira da reserva. Não peço desculpa às aves. Elas entendem tanto como eu. Quanta merda terão nas patas e nas asas ao abrigo destas reservazinhas, orlas como as das putas, como as margens dos rios em que chega o sangue dos inadaptados que estão sempre à beira da morte e a que só falta a auto psicopatia. Eu quero a minha bebé e quem sabe isso a natureza perceba. Eu só quero a minha bebé e tudo o que o tempo me dá é esta menstruação que me inunda o cérebro até à rebentação dos pés. Espero que não haja cruz na placa do columbário. Sem a tua voz tudo é ruído e o das cruzes é demasiado hediondo. Para onde vai a voz de quem não chega a nascer? A minha é um marulhar silencioso de ipómeas roxas no muro de mais este palácio em ruínas. São cinco da manhã e só nesta hora livre as verdadeiras aves se levantam. O sangue das patas a ferver na orla do bico. Eu fico, já sem a penugem quente nos lábios que afoguei no pequeno coração. Sem voz.



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