quinta-feira, 24 de abril de 2014

Nesse Natal, em Charleville





Nesse Natal, em Charleville


" La seule chose insupportable, c’est que rien n’est supportable. "
Arthur Rimbaud


As memórias que um dia sonhei minhas vão atravessando e diluindo as eras, estendendo-se como cordas onde secam, lentamente, os infinitos de outrora.
Ratazanas enormes parecem levar casas lá dentro. Penduradas nas árvores, bolas vermelhas com olhos muito azuis no centro; penduradas nos passeios, velhas afiando as unhas de talhar o fruto cortam a carne com as facas da paciência.
O vinho quente do norte da europa, uma feira branca e os arcos coloridos abrindo em gomos uma praça muito elegante. Será que já esqueceste o cheiro da canela? Por entre ruas cor de rosa mastigo, de mão dada, o torpor alado do maquinismo do passo, e os gatos magros fogem para trás de máscaras ostentadas por inúmeras placas misteriosas. Então vejo a ponte a aproximar-se e corro com o moinho ao longe para o seu braço solene. Inclino-me sobre o rio a tentar comer aquela luz que há nos olhos dos pássaros a morrer, um frio terrível e liso a ensandecer o corpo. A neve ensarilhada nos cabelos revoltos toca o colo das águas. Tenho-te a cercar-me todas as fronteiras, a ti, que não sabes, dedico esse mundo dorido de branco e de verde. Com uma ferida escarlate na órbita, a lucidez é tanta que entontece os sentidos. É estúpido ir ver campas, mas eu vou na mesma, como todos os outros. Chego à lápide com a noite. Si vous plait, laissez-moi entrer, je pars aujourd'hui. Com amigos que julgo eternos sento-me em cima das costas do banco, como que a calcar a morte, e tudo me é estranho na sua familiar aparição. Então, toda a exaustão se aproxima e observa a noite interna das vísceras mais sensíveis, uma imensa bigorna caindo sobre o mundo, oh terrível e sublime ópera humana, o tombar de todos os proletários do abismo, o eterno decapitar da Intensidade.
 

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