João ou Os Olhos Dos Peixes
(para o Jas)
I.
Há cidades azuladas a nascer em sentido inverso.
Lúcios cósmicos espreitam nas profundezas
Temos que nos virar ao contrário para ver.
Os teus olhos são uma lente mágica.
Dão-nos a comer pássaros homens
E peixes que atravessam o espaço sem tempo.
Os corpos caem do décimo andar para a tela.
Líquidos de cor estranha riscam em sonhos
As veias estranguladas da cidade.
As aves sofrem, mas não se deixam apanhar.
O seu vôo é doce, terno e corajoso
E a mulher que caiu deixa o coração intacto na praia.
Se quiseres, deixa crescer o sangue:
Há que alimentar os lobos da memória.
O longe é a forma nua da tinta que sai do teu gesto.
Fazes com que me sente com os lobos.
O piar da angústia ouve-se na cor.
A pureza das mãos das bestas é tua.
Vê bem: não podes tragar o teu próprio movimento
Ele está sempre para lá de ti, da tua fome.
Tropeças na tinta porque os peixes são os teus olhos.
Salta para dentro dos olhos, dizes.
O ar é vivo e traz vermelho o sol infantil.
O teu gesto é a música de um sonho que tive no futuro.
Sorves a seiva do mar pelos lábios do
mundo.
Sondas a memória da cidade sobre as águas
Porque o fundo é do tom vigilante do mistério.
Quase te afundas, mas nasces ilha na tela que te vulcaniza.
Porque toda a água te acompanha desde que nasceste.
Alguma vez o desejo te espartilha?
Por isso as bocas viajam contigo:
São o prolongamento visceral dos olhos.
As bocas são os terminais do desespero de quem sonha demais.
Estilhaços de amor encrustam-se na rede das visões.
Como condensar todo o desejo numa só vida?
Danças em êxtase para fingires que o tempo é maior.
Os sóis ocultos lincham a fome estraçalhada pelo vértice
da luz.
Convoque-se depressa o alongar do corpo na fúria do pintor.
O cheiro da tinta é a febre que te sacode para além das
nuvens.
II.
Rodas
arvoram cidades por detrás das janelas do mar. Olhos graves espreitam o amor no
avesso lupino do corpo, a carne entre as roldanas a inventar o tempo.
As aves têm
inveja dos peixes, as aves são homens disfarçados com patas leves de fugir o
sonho. As aves não querem a lassidão da terra, têm medo de ficar. Os peixes não,
são uma espécie bela de ser olhos, são caixas transparentes e brilhantes onde a
viagem viaja. Por isso não se pode segurar os peixes, eles escorregam pelas
veias umbilicais do mundo no fluir desatado da hybris. E tu - cosmonauta do
mar, nem peixe, nem ave, tu - pintor dos nervos que a noite quer
largar, toureias o desejo pela estrada difícil e oblíqua da cor.
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