sexta-feira, 25 de abril de 2014

O Soluço Da Fera


 
O Soluço Da Fera

 
Neste palácio de mar altivo as algas são redes, a vida estrangulando a vida. O vento, antigo companheiro dos pés no ar descalço e das travessuras temerárias da loucura, esqueceu-se de varrer as almas sujas e os ossos da morte  que vão sufocando os peixes moribundos. Não, agora mantém tudo no lugar, para ainda menos poder ser tocado. Só as sombras, que não podem ser tocadas, podem ser tocadas. É um vento que separa, esse facínora, um vento e o seu semblante de faca. Aqueles que andam no mundo com sabrinas escusam de coreografar mais bunkers enfeitados, os olhos morrerão no segundo seguinte à luz da lenha deste bote. Porque os lemes do medo são velozes, mas só percorrem círculos em vez de trespassarem a espada. Ela também tem tranças, mas ninguém vê, ninguém vê quanto vale a fragilidade de um punhal. Abro a faca no fundo do oceano e então ouço, apavorada, o soluço da fera. Alguém faz depois um altar para o soluço, e vêm rezar leões marinhos cheios de Ós maiúsculos nas mãos, portas de abismo com pestanas de pavor na vertigem das imagens. Mas eu não quero miasmas, nem tão pouco embalsamar o mar nos corações alheios. Tento ir embora, mas sempre o vento, sempre tudo a ser água submersa na contracapa da vida.
A memória é a substância dos olhos dos navegantes. Como uma corda que se lança para dentro, dias loiros escorrem do passado, dilatando um calor extinto. Nas mãos de água abrem-se sabres de primavera, véus floridos levitando os horizontes. Só ao longe um estrado imóvel, pensativo, esticado, apertando numa melancolia educada a cor dessa tarde... Na sua solidão de animal esganado ao sol, corre dentro de mim açúcar.

 

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