O Soluço Da Fera
Neste palácio de mar altivo as algas são redes, a vida
estrangulando a vida. O vento, antigo companheiro dos pés no ar descalço e das travessuras temerárias da
loucura, esqueceu-se de varrer as almas sujas e os ossos da morte que vão sufocando os peixes moribundos. Não, agora mantém tudo no lugar, para ainda menos
poder ser tocado. Só as sombras, que não podem ser tocadas, podem ser tocadas.
É um vento que separa, esse facínora, um vento e o seu semblante de faca.
Aqueles que andam no mundo com sabrinas escusam de coreografar mais bunkers
enfeitados, os olhos morrerão no segundo seguinte à luz da lenha deste bote.
Porque os lemes do medo são velozes, mas só percorrem círculos em vez de
trespassarem a espada. Ela também tem tranças, mas ninguém vê, ninguém vê
quanto vale a fragilidade de um punhal. Abro a faca no fundo do oceano e então
ouço, apavorada, o soluço da fera. Alguém faz depois um altar para o soluço, e vêm
rezar leões marinhos cheios de Ós maiúsculos nas mãos, portas de abismo com
pestanas de pavor na vertigem das imagens. Mas eu não quero miasmas, nem tão
pouco embalsamar o mar nos corações alheios. Tento ir embora, mas sempre o
vento, sempre tudo a ser água submersa na contracapa da vida.
A memória é a substância dos olhos dos navegantes. Como uma corda que se lança para dentro, dias loiros escorrem do passado, dilatando um
calor extinto. Nas mãos de água abrem-se sabres de primavera, véus floridos levitando os horizontes. Só ao longe um estrado imóvel, pensativo, esticado, apertando
numa melancolia educada a cor dessa tarde... Na sua solidão de animal esganado ao sol,
corre dentro de mim açúcar.
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